Catálogo de Obras do Autor

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Gaiolas e Asas, um trecho de Rubem Alves


Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-las para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado. Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de segundo grau, em escolas de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças... E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, dar o programa, fazer avaliações... Ouvindo os seus relatos vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra - e a domadoras com seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a força dos tigres... Sentir alegria ao sair da casa para ir para escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O seu sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres e a mesma
porta que as fecha junto com os tigres.
Nos tempos da minha infância eu tinha um prazer cruel: pegar passarinhos. Fazia minhas próprias arapucas, punha fubá dentro e ficava escondido, esperando... O pobre passarinho vinha, atraido pelo fubá. Ia comendo, entrava na arapuca, pisava no poleiro – e era uma vez um passarinho voante. Cuidadosamente eu enfiava a mão na arapuca, pegava o passarinho e o colocava dentro de uma gaiola. O pássaro se lançava furiosamente contra os arames, batia as asas, crispava as garras, enfiava o bico entre nos vãos, na inútil tentativa de ganhar de novo o espaço, ficava ensanguetado... De quanta violência é capaz o frágil corpo de um pássaro... Sempre me lembro com tristeza da minha violência infantil.
É o pássaro que é violento? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas?
Me falarão sobre a necessidade das escolas dizendo que os adolescentes de periferia precisam ser educados para melhorarem de vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, é preciso que todos tenham uma boa educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor.
Mas, eu pergunto: Nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa educação?
O que se pressupõe é que os alunos ganham uma boa educação se eles aprendem os contéudos dos programas oficiais. Para se testar essa aprendizagem há uma série de mecanismos de avaliação, aumentados pelos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.
Mas será mesmo? Será que a aprendizagem dos programas oficiais é a essência daquilo que se definiria como uma boa educação?
Você sabe o que é "dígrafo"? E os usos da partícula "se"? E o nome das enzimas que entram na digestão? E a forma como se reproduzem as estrelas do mar? E o sujeito da frase " Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante"? Que é que você pode fazer com a palavra "mesóclise"? Pobres professoras, também engaioladas... São obrigadas a ensinar o que os programas mandam...
O sujeito da educação é o corpo. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver.
Nietzsche dizia que ela, a inteligência, era "ferramenta" e "brinquedo" do corpo. Nisso se resume o programa de aprendizagem do corpo: aprendizagem de "ferramentas" e de "brinquedos". "Ferramentas" são conhecimentos que me permitem resolver os problemas vitais que me desafiam no dia a dia. "Brinquedos", ao contrário, são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma. No momento em que escrevo estou ouvindo o coral da 9ª sinfonia. Não é ferramenta. Não serve para nada. Mas enche a minha alma de felicidade. Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o
resumo educação.
Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me dão liberdade prática. Brinquedos me dão liberdade espiritual. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos não fica violento. Não bate asas e bico contra as grades. Porque não há grades. Só há o espaço livre...
Não me impressionam as estatísticas oficiais que anunciam o aumento do número de escolas e de alunos. Fico a imaginar: gaiolas ou asas?
.......
E você, amigo(a), acha que nossas escolas hoje estão mais para gaiolas ou para asas?

2 comentários:

Anônimo disse...

Qual o nome desse livro de Rubem Alves??

Anônimo disse...

Aprendi muito