AURORA BOREAL: UM CONTO DE NATAL
Simão de Miranda
Tu tens um medo: acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Cecília Meirelles
I
Noite regada a vinho
barato, chuva fina insistente. Dois amigos pelas ruas da cidade. Vitrines
repetiam idêntica decoração natalina de não-se-sabe quantos anos passados. Os
dois amigos cruzavam por não-se-sabe quantos indivíduos trôpegos de olhares rubros.
Mesmos acordes, mesmo tom sombrio de não-se-sabe quando, quando o silêncio, sempre
cântaro frágil, quebrou-se ao cair da boca:
–
Será essa, a intenção desta
festa? Natal só significa álcool e banquetes?
–
É uma... hic! Data qualquer,
Osvaldo. É feriado, não? A gente precisa comemorar...
–
Seu fígado não está muito
interessado, está reclamando!
–
Ele reclama, é um idiota! Não
reconhece as delícias da vida!
–
Nada disso, precisamos mais de
amor que de álcool. A carência é mundial.
–
Ah, ah! Você é o primeiro
quarentão carentão que conheço, hic!
–
Ambiguidade infame! Você está
bêbado, o Natal pra você não faz qualquer sentido?
–
Bolas, eu só bebi vinho! O
Cristo também bebeu vinho!
–
Mas não chegou a este estado
deplorável! Que vexame...
–
Fizeram exame... hic! Com o
bafômetro?
–
É, já vi que você não está em
boas condições...
–
Amigo, só bebo uma vez por ano,
e é nesta data. O que há de mal?
–
E o que você faz em todos os
finais de semana do ano?
–
Ensaio, hic!
–
Ah, sim. Hoje é quinta, amanhã,
que a manhã já anuncia, é sexta. Veja só, a cidade: uma fortuna inteira em
eletricidade, para armar o melhor cenário. A cidade colorida como nunca e a
gente nem olha pra cima. Resultado: não vê a estrela de Davi, nem esse céu
supremo...
–
Você é católico? Não... hic!
Sabia.
–
E não sou. Mas você é caótico!
–
Ambiguidade pior! Qual o motivo
da pregação?
–
Estou vivo, Raimundo. Por isso,
precisamos assinalar uma data qualquer, como você disse, para pensarmos sobre
os mistérios da criação. Mesmo que seja entre um copo de vinho e outro.
– Hic! Eu também tenho
uma data, ora! É o carnaval, a festa que vegetariano não entra! A festa da
carne! Ah, ah, ah! É uma data bem alegre, não?
–
Até demais. A noite já se
adianta. Não adiantam essas máscaras de Pierrot
fora de estação. Já se pode ver no horizonte a presença inevitável de outro
novo ano. Deveríamos lembrar-nos disso. Não como esse seu vergonhoso caso de
amnésia que vem e vai...
–
Amné... hic! Eu? Francamente,
não me lembro quando sofri amnésia...
–
Acaba de sofrer a última, Raimundo.
Veja, por exemplo, a árvore de Natal da Praça Central. Consegue lembrar-se
desde quando é a mesma? E essas teias de luzes? E as canções? Hein? Acorda.
Daqui a pouco, mais um novo dia da Era Cristã... Você era cristão, hoje nem
sabe onde se classifica. E as gerações que se sucederam não se esforçaram para
cumprir o que sugeriam os Estatutos, por isso não temos perspectivas otimistas
para os dias vindouros. O horizonte da cidade começa a abrir as cortinas e deixar
vazar timidamente as primeiras luzes. Acorda! Veja que espetáculo sem igual!
Elas vêm do norte, junto com a brisa e varrem os becos ressaqueados da cidade.
As janelas vão se abrindo em balé bem ensaiado. Vem fluindo luz, penetrando
retinas avermelhadas, oferecendo chance. Abra o olho e veja os pombos revoando
sob a neblina. Nem precisam ensaiar essas arrojadas evoluções aéreas. Fazem
isso há décadas. Não nos cobram pelo espetáculo. Natal é pra nascer, não para
se perder nos entulhos ou se sujar nas bocas de lixo. Vamos, Raimundo, levantar
acampamento! Vamos recolher todas as alegrias desta noite como se fossem para
sempre e semeá-las para que cada dia seja a mesma vibração. Aquele habitual banho
frio deve reanimá-lo... O que há? Deixou-me falando sozinho?! Não me ouve? Espera...
II
Após
vinte minutos, partia o rabecão do Instituto Médico Legal da cidade, com total
alarde. Sempre com pressa, velocidade, premência, o motorista sequer olhava
vitrines e certamente não se preocupava em saber se as decorações eram as mesmas
ou não. Ele as via com olhos avermelhados de sono, como tarefa rotineira. Osvaldo
ia petrificado ao lado de Raimundo, entalado com o silêncio abominável. Fechava
o tempo. O vácuo inesperado e aquele nó na laringe incomodavam sobremaneira.
Ácido a corroer por dentro. Natal é pra nascer, não para se perder... Aquilo
soava em eco, como goteira no meio da noite, enquanto ele ruminava distante...
Sentido do Natal? Quem falou em sentido do Natal?
A
viatura entrou, peremptória, na primeira rua à esquerda e desapareceu na avenida
vazia da cidade fantasma.
